26 de janeiro de 2010

«A ÚLTIMA ABBADESSA»

(do mosteiro de S. Bento de Avé-Maria)

«Vi-lhe o retrato. Atravez das lentes dos óculos faiscava um raio de luz firme dos olhos vivos, e os lábios entreabriam-se cortados por uno sorriso fino, que devia ser terrível nos momentos coléricos da prelada. Fora corpolenta, mas aos oitenta e três annos tinha as formas franzinas; porém, segundo me informaram, conservava-se ligeira, e, encostada á sua bengala preta de castão de moleta, e ponteira forrada de flanella, - para que a não sentissem, ou não perturbasse o silencio monástico, — percorria todo o mosteiro investigando do asseio, arrumação e disciplina.

Se os abbades benedictinos, esquecidos da aspereza da vida recommendada pelo seu fundador, converteram as abbadias, e especialmente as suas cellas, em moradas luxosas, depois de terem sido verdadeiras praças de guerra, a ultima dona abbadessa do mosteiro da Ave Maria, do Porto, vivia n'um quarto quasi pobre, cujo limiar transpuz debaixo da impressão d' uma curiosidade commovida.

Era a primeira pessoa que alli entrava depois que o cadáver fora transportado para o coro debaixo, onde em roda do catafalco se lhe fizeram pomposas exéquias, como se fora presente o corpo d'um bispo.

Emquanto se abriam as portas e destrancavam as janellas para entrar a luz, perguntava de mim para mim o que seria a habitação da ultima das representantes do patriarcha de todos os monges, como na hierarchia monástica é designado S. Bento. Aos monges recommendava elle, nos princípios da ordem, que deviam deitar-se vestidos cingidos com as suas correias, mas sem as facas ao lado, «porque acaso dormindo não se firam entre sonhos»; devendo haver candeia acesa no dormitório. Se a regra servia para as monjas, o quarto da abbadessa pouco devia ter. Só depois verifiquei que, não tendo S. Bento instituído ordem para mulheres, os seus successores applicaram-lhes as regras feitas para os homens, tendo o cuidado de mudarem os substantivos e seus concordantes para o feminino; donde resultam, por vezes, disposições mais do que extravagantes, como esta das facas. Felizmente para as monjas o rigor primitivo foi bastante modificado, permittindo-se-lhes dormirem em separado, cada qual na sua cella, usando de enxergão de palha, de um par de lençoes de estamenha ou de lã, de uma fronha de lã com seu travesseiro de panno de linho. Ás de cincoenta annos para cima se permittiam colchões de lã ; as de sessenta annos e enfermas podiam usar de lençoes de linho, mas nunca de cobertores de seda nem de sobre-céo.

Abriu-se uma janella. A. luz entrou a jorro; uma claridade intensa de sol de junho, em dia de atmosphera limpida. Senti um grande allivio, e mais ainda, quando, corrida a vidraça, a aragem diminuiu o cheiro dos desinfectantes, que é de uso collocar por hygiene e devoção nas camaras mortuárias.

As janellas, que abrem por cima da portaria, olhando para o largo mais concorrido do Porto, já não teem rotulas, embora ainda sejam gradeadas, dão luz a duas cellas pequenas, que foram convertidas n'uma só, por meio d'um arco, que substituiu a parede divisória. Lá no canto, ao fundo, uma cama de nogueira á franceza, sem roupa; commodas com oratórios, um sofá de velho estofo, sobro que estavam ainda esquecidas quatro velas da encommendação; algumas cadeiras; dois consoles; uma banquinha de costura, e pelas paredes quadros de piedade, em gravura ou photographia, e um a óleo, do santo patriarcha. Por cima das mesas livros d'orações, contas, e a um canto a bengala em que já fallei. Um quarto andar burguez de gente pouco abastada, sem nenhum característico abbacial, sem esse quid de devoto que costumam ter os aposentos das octogenárias piedosas; mas devo notar que a velha benedictina, que cinco ou seis dias antes fallecera, era mais uma severa e honrada administradora do que uma beata. Vendo-se a simplicidade d'aquelle aposento, não se imagina que em dias de grandes solemnidades a abbadessa, que alli morava, arrastaria pelos corredores a longa cauda da sua túnica negra, longa de muitos cevados; que as mangas largas do seu habito roçariam pelo chão, e que de báculo de prata era punho, como qualquer bispo, ella se encaminharia ao sólio por entre as alas das freiras e pupillas, reverentemente curvadas na sua passagem.

Pelas apparencias do quarto, o que se podia suppôr era a existência d'uma boa velhinha, arranjada e cuidadosa, aspirando entre duas Avé-Marias d'um rosário a tradicional pitada, e largando o lenço vermelho, para continuar recortes de papel de cores ou enganchar malhas de crochet.

Durante o dia occupava-se sem descanço da administração da casa, com cuidados meticulosos e honradez inexcedivel, e dormia a noite tranquilla, tendo as chaves do convento debaixo do travesseiro. Por mais de uma vez, olhando para as dezenas de pessoas que por sua morte iam ficar ao abandono, teve Ímpetos bons de lhes dar alguma cousa dos contos de réis que tinha em seu poder, e que o Estado herdou; mas esse mesmo pensamento ella o affastava como criminoso, repetindo que era administradora e não a senhora dos bens dados á sua guarda. Em contraposição a esta senhora, lembro-me de outra abbadessa, a que já me referi, que tinha o cynismo de dizer, quando distribuía os bens do mosteiro aos capellães, aos médicos, aos advogados e até aos amantes :

«Se outros hão de roubar, vou eu roubando

Uma única preciosidade sahiu do mosteiro e com sua auctorisação: foi o báculo rico. Eis, approximadamente, como as cousas se passaram.

Por occasião do cerco do Porto, o mosteiro, privado do rendimento dos seus fóros, e soffrendo ainda os sacrifícios da reconstrucção da egreja e das contribuições de guerra e de defeza, sofria bastantes privações. A communidade recorreu á casa Ferreirinha da Regoa, (que abonou as quantias precisas sobre hypoteca do báculo rico; e as lâmpadas tiveram azeite, comida as mezas e ministros os altares. Tempos depois, o báculo veio para o uso monástico, por não querer revendel- o o novo possuidor, com a condição de que voltaria ao seu poder, assim que se extinguisse o mosteiro. A velha abbadessa cumpriu a clausula do empréstimo; e, vendo-se adeantada em annos e aggravada nos achaques, temendo uma surpreza da morte, como virgem prudente, enviou o báculo ao seu legitimo comprador. Foi pena, porque a casa Ferreirinha da Regoa não precisa d'aquelle bastão abbacial para lhe augmentar a opulência, e o museu nacional poderia ter adquirido um objecto, quem sabe, de grande valor artístico.

Esta velha freira, rigorosa administradora e rispida prelada, adorava as creanças. Não existia canto de gaveta ou armário que lhe pertencesse, onde não houvesse depósitos de brinquedos, destinados ás suas visitas infantis. Ao contrario das mulheres privadas dos gosos ineffaveis da maternidade pela natureza, pelos votos religiosos, ou por falta de comprehensão do seu mais importante dever social, que conservam sempre no imo d'alma um fermento de ódio para tudo quanto ri, brinca, faz alarido e se expande, que teem caricias d'um exagero contrafeito, no fundo das quaes, como nas dos felinos, se encontra mal encoberto o aguçado da garra, aquella boa senhora, como Christo, seu esposo mystico, chamava a si as creanças, comprazia-se com as suas travessuras, e se no espolio do mosteiro ella deixou umas poucas de
dezenas de contos para o governo, paramentos e livros ricos para o prelado; se as bibliothecas e archivos herdaram alguns volumes e quantidade enorme de curiosos pergaminhos, as creanças, se alguém se lembrar de repartir os brinquedos dispersos pelos seus moveis, também terão a sua parte no espolio, e os seus alaridos alegres serão as mais agradáveis exéquias que poderá ter desejado aquella ultima das benedictinas!

Continuação da visita

Ouvira muitas vezes fallar em cilicios e disciplinas, mas como nunca tinha visto nem uns nem outras, quasi que já começava a crer que ambas as cousas fossem simples recordações de muito alongados tempos. N'este passeio pelo convento da Ave Maria, n'um armário, em frente ao corredor por onde se sahe do quarto da abbadessa, e que servia de bibliotheca, encontrei dois saccos encerrando aquelles instrumentos de mortificação monachal.

As disciplinas consistem numa espécie de chicotes, som cabo, com bastantes pontas, umas todas de corrente de arame, outras de corda, e algumas de corda com as pontas de vergalho presas por argolas d'arame. As constituições marcavam que durante o tempo d'um Miserere com a antiphona Ne reminisceris, em certos dias e festividades, se applicaria a disciplina conventualmente. Cada qual se fustigava, e é de crer que a força dos chicotadas estivesse na razão directa da crença e da perturbação da consciência; mas o mais provável é que fossem as mais innocentes as que mais se castigassem.

Os cilicios eram um encadeado de arame, tendo cada annel um ou dois bicos, que se collocava no grosso do braço, na coxa ou na cintura. Eram elles os grandes protectores da castidade, cuja guarda, apesar da clausura, não era das cousas mais fáceis, pela facilidade da queda a que todas andavam sujeitas.

O padre mestre Gabriel Talhot, explicando a regra de S. Bento ás religiosas, alarga-se mais do que é conveniente — pelo menos assim me parece — a este respeito. São d'elle as indicações do que as religiosas se devem de abster: «... assim de pensamento como de palavra, e de obra, como de desejos torpes, deleitação morosa, pensamentos lascivos, tocamentos deshonestos, vistas provocativas, ósculos e todos os mais actos que possam offender a virtude da castidade; e com isto está dito o que se pôde dizer com decência d'esta matéria em lingua vulgar. . . »

Imaginem o que não diria o padre mestre se escrevesse em latim ! Ainda assim não resistiu em citar ás reverendas madres que a «santidade de Clemente VII mandou com rigoroso preceito a todas as religiosas, que nenhuma tivesse cãesinhos, ou como se chamam, cães de estrado, ou de os trazer no collo, pelos grandes inconvenientes e perigos que trazem comsigo». E depois segue-se um rol enorme das cousas prohibidas ás religiosas terminando da maneira seguinte:

«Não menos perigosas, damnosas e culpáveis são as amizades particulares das religiosas entre si, e com as pessoas seculares do convento, e me não explico mais, entenda cada uma o que quero dizer

O diabo é se ellas o entendiam !

Voltando á esquerda, subimos alguns degraus e entramos no coro. É espaçoso, inundado de luz, e com bancadas eguaes ás do coro debaixo, para noventa religiosas. Ao centro uma bella estante e sobre ella grossos livros de cantochão, em pergaminho, com illuminuras d'uma arte já no ultimo período da decadência, mandados fazer no século XVII N'esta estante ha umas gavetas onde se achavam os únicos livros profanos que existiam no mosteiro !

Outr'ora as festas eram celebradas com musica de capella, e além do órgão, e realejos, ainda em uso alli no século XVII, havia harpas e rabecões. Mais modernamente os rabecões desdobraram-se em violoncellos, e creio que as harpas foram substituídas por violino e violeta.

No armário das musicas, entre muitos trechos ecclesiasticos de auctores portuenses, encontrei alguns de musica italiana do fim do século XVIII, que provavelmente era executada por occasião dos abbadessados, ou festas solemnes; uma das musicas profanas chamou-me a attenção e não resisto ao desejo de a descrever.

Depois da capa, e enquadrado n'uma cercadura a cores, fazendo lembrar estuques da baixa do principio do século, vem o titulo assim disposto :

Ária
Ai meu bem desfallecido
offerecida
á Ex,""' Senhora
D. Maria Amália
por seu criado
Francisco Guedes.

Diz-me o coração que este Francisco Guedes foi o auctor da musica, dos versos e dos desenhos — um artista complexo como os da Renascença; e além d'isso pedaço d'asno.

Segue-se depois uma pagina com um esguio ramo feito de dois simples amores perfeitos e dois galhos de fuchsia symetricos, tudo atado por um laço vermelho com pintas amarellas.

Entra depois a musica, caprichosamente escripta á penna, com uma longa introducção, em que a mão direita e mão esquerda andam em saltos successivos invadindo uma os dominios da outra; depois o piano cala-se, e entra a voz em recitativo:

Ai I meu bem desfallecido,
Mal te posso adeus dizer.

E cala-se a voz, para deixar de novo começar o pianista a brilhar, até que a voz termina o recitativo, d'esta vez siisentado por simples accordes :

A teus pés perdido o alento,
Adeus Mareia eu vou morrer.
A teus pés perdido o alento,
Adeus Mareia eu vou morrer.

Não morre tal; faz exactamente como o Trovador, e depois d'uma nova introducção entra no andante expressivo ;

Se tens da vida e da morte,
Se tens da vida e da morte.
Mareia, a chave em teu poder,
Mareia, a chave em teu poder,
Se feixas da vida a porta,
Adeus Mareia, eu vou morrer.
Adeus Mareia, eu vou morrer.

O maestro nota que este ultimo adeius é ad libitum. Tudo é permittido a quem vae morrer. Mas o poeta-musico não morre assim, e passa, depois da inevitável suspensão, ao allegro moderato. Não tem que ver, é um lyrico a maneira rossinista. Temos os competentes harpejos, e depois :

Veloz fama pelo mundo,
Vae teu nome escurecer,
Vae teu nome escurecer,
Vae teu nome escurecer,
Vae teu nome escurecer !

Toma a respiração em quatro compassos e tres quartos, e continua :

D'ingrata o nomo receia,
Adous Mareia, ou vou morrer.
D'ingrata o nome'reccia.
Adeus Mareia, cu vou morrer.
Adeus Mareia, eu vou morrer.
D'ingrata o nome receia.
Adeus Mareia, ou vou morrer.
Veloz fama pelo mundo,
Vae teu nome escurecer.
Vao teu nome escurecer.
Vae teu nome escurecer.
Vae teu nome escurecer.
D'ingrata o nome receia,
Adeus Mareia, eu vou morrer.
D'ingrata o nome receia.
Adeus Mareia, eu vou morrer.
Eu vou morrer. . .

E mais oito como este !

Que pena para arte que este verso se não realisasse; e que severas contas tomaram Deus e o patriarcha S. Bento á abbadessa que taes cantigas consentia, guardadas com as ladainhas e as missas solemnes!

Depois da musica, uma pagina com um ramo composto de um botão de rosa, uma tulipa e flores desconhecidas enlaçadas por uma fita amarella e verde.

Percorrendo a galeria do coro, cheia de altares onde os santos se agglomeram, e onde apenas encontrei digno de menção, uma Piétá de harmónico colorido e expressão verdadeira, pintada em cobre dentro de uma moldura de prata lavrada (1) fui dar á tribuna da capella-mór, onde vi, que sobre o livro da matriarcha Santa Escholastica estavaum a carta dobrada, não a pude lêr: mas lembrei-me logo de quão grande era, e é ainda, em roda dos mosteiros, a tribu dos Franciscos Guedes.

Na sabida examinei o altar de S. José, onde se acha uma senhora de Lourdes, de gesso, com o conhecido distico Je suis l'lmmaculée Conception, phrase que devia ser um testemunho evidente da falsidade da apparição; porque se Maria apparecesse e fallasse, podia dizer que tinha concebido sem macula, mas nunca que ella era a Conceição immaculada.

Este engano dos inventores de milagres, faz lembrar aquelle philosopho que um dia se lembrou de perguntar porque era que ApoIlo, o deus da poesia, quando se expressava pela boca da pythonisa, — que até alli fallava em verso, — o fazia em versos detestáveis.

Foi desde então que a adivinha começou a fallar em prosa.
Sobre este altar, dedicado ao que o catholicismo tem de mais puro, existia uma caixa de phosphoros de cera, destinados a accender a lâmpada, e que tinha estampada d'um lado a Schneider, vestida de Grã-duqueza, e do outro uma cancanista, na attitude de bater com a ponta do pé na ponta do nariz.

Os extremos tocam-se !»

(1) Consta-me que este quadrinho foi posto em leilão e comprado por 70$000; graças a ter-lhe um curioso escripto o nome de Raphael n'um dos cantos!! E houve quem tomasse a brincadeira a sério !


In «Frades e Freiras (Chronicas Monasticas)», por T. Lino D’Assumpção,
Typ. da Companhia Nacional Editora, Largo do Conde Barão, nº50, 1893, Lisboa.

Nota: A última abadessa de S. Bento, chamava-se Maria da Glória Dias Guimarães e faleceu em 17 de Maio de 1892.

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