8 de março de 2012

PONTE PÊNSIL NO PORTO


(clikar na imagem para ver com mais pormenor)


A gravura que adorna o rosto d’este numero, é cópia de uma excellente photographia da collecçao do sr. Seabra.  Representa o bello e pittoresco formado pelas extremidades de léste do Porto e Villa Nova de Gaia, pela serra do Pilar e penedia do Prado do Bispo, pelo Douro de apressada corrente, por extensas cordilheiras de montanhas, que as margens do rio se vão elevando umas sobre outras, até se perderem no horisonte.
Do lado esquerdo vé-se, no primeiro plano, a encosta por onde a cidade vem descendo do alto monte até á rua chamada de Cima do Muro, por correr sobre um lanço da antiga cérca de muralhas que defende esta parte da povoação das invasões de um inimigo que todos os annos lhe causa mais ou menos prejuízo -  o Douro entumecido com as aguas do inverno. No ponto mais elevado da encosta avulta o lanço da velha cêrca, com as suas ameias e uma torre.  É o lanço que protegia a cidade pelo lado de léste, descendo da porta do Sol pelos Guindaes até á Ribeira. Hoje serve de muro da cérca das freiras de Santa Clara, e a torre de mirante, para o que a cobriram com telhado, construindo no logar das ameias, nas quatro, frentes janellas com grades de ferro.
Este apinhoado de casas em forma de throno offerece um aspecto pittoresco a quem o contempla do rio, ou da margem opposta, mas interiormente é hediondo. Figure se uma rede emaranhada de ruas e viellas tortuosas, estreitas, immundas, orladas de casaria de muitos andares, que mal deixando penetrar o sol e girar o vento livremente, conservam o pavimento das ruas sempre humido e infecto. É um bairro parecido com o nosso de Alfama, com a differença,  porém, de que neste já entrou de algum modo o progresso, reconstruindo, canalisando e aceiando as ruas. Entretanto, no meio d’aquella casaria, em geral de apparencia pouco agradável, existe uma antigualha que merece attenção, e que faz pena não estar melhor situada. É uma casa nobre de architectura gothica, com suas janellas de columna ao centro e coroa de ameias em volta do telhado. É construcção do principio do seculo XVI e propriedade e residencia da familia Van Zeller. A frontaria principal, em que se abrem duas galerias de janellas, deita para a rua da Reboleira, que é uma das peiores d’aquelle bairro. Os outros dois lados da casa apparecem na estampa por detraz da rua de Cima do Muro.
Além do antigo lanço de muro ameiado da cérca das freiras de Santa Clara, descobre-se ainda a cidade estendida sobre altas e escarpadas rochas, que o rio banha. Vêem-se alli algumas bonitas casas com seus jardins. e o passeio das Fontainhas que consiste em uma pequena alameda sobranceira ao Douro guarnecida de assentos de pedra,  e com uma fonte de muito boa agua. Goza-se d’aqui uma perspectiva de infinita belleza e de variadissimos contrastes.
Aquella estreita garganta de fragas inhospitas e denegridas, que apertam a corrente do rio até vir lançar-se por diante da cidade;  as montanhas que se erguem no fundo do quadro; e a serra do Pilar com o seu historico mosteiro feito em ruinas pela guerra, e condecorado por galardão com as honras de fortaleza de primeira ordem, já os nossos leitores as conhecem pelas gravuras e artigos publicados a pag 49 d’este volume, 381 do v, e 105 do iv.  De Villa Nova de Gaia, cujo extremo de léste se espélha no Douro aos pés d’aquelle mosteiro, havemos de tratar com mais vagar e em occasião opportuna.  Esta importante povoação emporio dos vinhos do Alto Douro, centro de grande industria, pede artigo especial e um logar distincto neste semanário. Resta-nos portanto fallar da ponte pênsil, que, unindo a cidade do Porto a Villa Nova de Gaia, dá passagem á magnifica estrada macadamisada que atravessa Portugal desde Lisboa até aos Arcos de Val de Vez, e em breve até Valença
 Durante seculos era uma ponte de barcas que communicava as duas margens do Douro, em frente da segunda cidade do reino. Já se vé que no inverno ficavam muitas vezes, e por longo espaço de tempo, interrompidas as relações da capital não só com o Porto, mas tambem com as provincias no norte;  pois que as cheias do rio tão communs n’essa estação, obrigavam logo a auctoridade a mandar desprender as barcas e levantar a ponte, para que a violencia da corrente a não destruisse e arrebatasse como não poucas vezes succedeu, ora por desleixo na promptidão das ordens, ora pelo repentino crescimento das aguas.
 As immensas difficuldades que apresenta este rio para ser cortado por uma ponte de pedra, explicam naturalmente a razão por que até aos fins do seculo passado se não proveu de remedio a tão grande mal. Porém deixar correr mais de meio seculo depois que a arte introduziu e multiplicou na Europa as pontes suspensas, inventadas pelos chins, sem que se fizesse um esforço para remover aquelle grande estorvo, e causa de prejuizos ao nosso commercio interior, é coisa que não se pôde explicar senão pelo nosso proverbial desleixo. As invasões e guerras do principio d’este século, e as luctas e discordias intestinas que absorveram com pequenos intervallos os seus dois primeiros quartéis, não bastam para desculpa de tão grande incúria.
 Coube porém ao reinado da sra D. Maria II, de saudosa memoria, a gloria de dotar a cidade do Porto e o paiz com um melhoramento tão importante, como foi a ponte pensil que ora atravessa o Douro. A primeira tentativa data do anno de 1837, em que o sr. conde de Lucotte, por parte de uma companhia, apresentou ao governo uma proposta para a edificação de uma ponte suspensa entre o caes de Vlla Nova de Gaia e a praça da Ribeira no Porto. A proposta ia acompanhada de uma planta da projectada ponte feita pelos engenheiros mrs. Mellet e Bigot. Annuiu o governo promptamente. mas a camara municipal do Porto e os moradores da praça da Ribeira representaram contra este projecto, allegando que as construcções e amarrações proprias de uma ponte suspensa entrariam muito pela praça dentro, obstruindo-a e embaraçando o grande movimento commercial que ahi ha diariamente.
Para obviar a estes inconvenientes modificou a companhia aquelle plano de modo, que,  em logar de dois arcos de suspensão erigidos nas extremidades da ponte, construir-se-hia só um ,mas colossal, no meio do rio, e nas duas margens apenas quanto bastasse para prisão das amarras.
 A camara municipal approvou e applaudiu muito este projecto, que a diversas vantagens economicas e de muita importancia para a cidade juntava a elegancia e riqueza de construcção como monumento publico, sobretudo no grande arco de suspensão que era verdadeiramente triumphal.
 Chegou a dar-se começo aos trabalhos, porém taes duvidas e receios se originaram, de suppostos perigos e prejuizos maritimos na occasião das maiores cheias, e de pejamento no porto,  que se levantou e tomou vulto uma forte opposição á edificação da ponte n’aquelle sitio.  Recorreu a companhia ao governo e este consultou o inspector geral das obras publicas do reino o fallecido Luiz da Silva Mousinho de Alhuquerque.  Este sabio funccionário partiu immediatamente para o Porto; ouviu as queixas e apprehensões , axaminou as diversas localidades apropriadas á execução da obra, escolheu para este fim as abas da serra do Pilar, logar em que principia a levantar sobre o Douro, junto a Villa Nova, a massa informe de suas graníticas. Mousinho de Albuquerque baseou a escolha nas seguintes razões: 1º  Deixar livre e desembaraçado o porto da cidade ao seu grande e crescente commercio marítimo; 2º Procurar situação onde, em tempo opportuno, podesse a ponte dar á nova estrada de Lisboa ao Porto, sem as difficuldades de expropriações onerosissimas como veio a realisar-se ha poucos annos. 3ª Poder-se construir ponte em elevação muito superior ás maiores cheias, conservando-se por conseguinte, sempre viavel ,dissipando d’est’arte os terrores panicos de que sobrevir tal crescimento de aguas, que estas arrebatassem a ponte e varressem com ella para o mar todos os navios ancorados no rio. Adoptado este alvitre pelo governo e pela companhia, a coutento tambem da camara municipal, e aprovado o novo risco da ponte feito pelo engenheiro Estanislão Bigot, fez-se a inauguração dos trabalhos no dia 2 de maio de 1841, anniversario da abdicação do sr. D. Pedro IV na pessoa de sua augusta filha, a sra D. Maria II. Celebrou-se aquelle acto com a solemnidade usada em taes casos, assistindo á ceremonia as auctoridades e camaras municipaes Porto, e Villa Nova de Gaia.
No principio de fevereiro de 1843 estava ponte acabada, restando apenas a conclusão de obras accessorias. Fizeram-se, pois, as experiencias, collocando se sobre o leito da ponte consideravel peso, que se compunha de muitas cheias de agua e de grande quantidade de madeiras. Ouando a companhia, porém, se occupava dos preparativos para dar a maior solemnidade á abertura ponte ao transito publico, sobreviveu uma cheia tão grande no dia 17 do dito mez de fevereiro, que foi mister tirar logo a ponte de barcas, e franquear ao povo a nova ponte sem mais ceremonias de inauguração.
Desempenhou o engenheiro com muita e felicidade a diflicil missão de que se encarregou. A ponte ficou elegante, sólida, e monumental; e tanto acerto e prudencia foram dirigidos os trabalhos, que não houve accidente algum desastroso durante sua construcção, circunstancia digna, por certo se notar em uma obra grande e ousada.
A extensão total da ponte é de 170m,14, mais 15 metros do que a largura do Douro. O pavimento, incluindo os dois passeios dos lados, é de 4m,10 de largura; a elevação acima do nivel do rio, no seu estado normal, é de 10 metros ou pouco mais. Suspendem a ponte quatro obeliscos ou pilares de granito, collocados dois em cada extremidade, unidos junto aos capiteis, que são de ordem dórica, por uma barra ou travessa de ferro, em se lé a seguinte inscripção: «D. Maria II -  1842».  Os obeliscos tem quatro faces, 18 metros de altura, e são coroados com umas espheras de pedra acroterios. A madeira empregada no pavimento e guardas foi toda de pinho de Flandres.  As traves, cabos de amarração, e de suspensão, estribos, etc., tudo é de ferro.  
A obra de madeira tem sido por vezes reformada.  A de ferro cremos que ainda se conserva em estado, apesar dos vinte e um annos de uso e tão pesado. Todavia, não tem faltado apprhensões  acerca da sua segurança, as quaes tem levado a auctoridade a proceder a novas provas, carregando a ponte com grandes pesos durante um certo espaço tempo. Porém a mais cabal prova, do que essas experiencias officiaes, assistimos nós em um dia de dezembro do anno passado, pois que vimos aguentar ponte o peso e o balanço que lhe imprimiam dez carros, todos com grandes cargas, passando ao mesmo tempo em direcções oppostas, e juntamente com muita gente a pé, e alguma a cavallo. Este facto, que é sem duvida uma imprudência, mas que repete de ordinario em certos dias da semana, em que é extraordinariamente grande a concurrencia dos o do povo dos arrabaldes do sul á cidade, deve fazer desvanecer a exaggeração das apprehensões. Entretanto não pôde dispensar a companhia, nem a auctoridade, de exercerem constante vigilancia e fiscalisação, para que seja bem conhecido o estado de segurança da ponte, e se evitem imprudências, que podem ser causa de uma gravissima desgraça. As despezas de construcção d’esta ponte foram feitas por uma companhia de accionistas, que usufrue compensação os rendimentos da mesma ponte, consistem no preço da passagem dos transeuntes, segundo a tabella estatuida pelo contrato feito com governo e approvado pelas cortes.

I.   de  Vilhena Barbosa


in Archivo Pittoresco, Ano de 1864



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